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segunda-feira, agosto 23, 2004

Daiane disse ‘que merda’

Sobre o Cotidiano
Era possível sentir a tensão na sala quando anunciaram que a prova iria começar. Olhos vidrados, coração a mil. Se todos estão assim, eu pensei, imagina como deve estar a menina lá, no meio de toda a algazarra. Pois bem. No primeiro desequilíbrio, um oooooooohhhhh percorreu o ambiente: uns se sentaram, outros foram tomar um café, outros pediram aos céus: tomara que as outras também caiam. Mas depois vimos a expressão de Daiane descendo as escadinhas em direção aos braços da equipe técnica, os lábios se movimentando em um decepcionado ‘que merda’, os olhos tristes, baixos, quase com vergonha.

Senti pena. Ao meu lado gritavam que não, que pena era o caramba, que era preciso ser profissional, etc etc. Mas eu senti pena, e não a pena ruim, a que coloca o outro por baixo, mas a pena no sentido de compaixão, no sentido de partilhar com a pessoa a dor que ela estava passando, mesmo sem saber o que ela estava passando.

E então me ocorreu que o Brasil nunca terá ginastas campeãs olímpicas. Não digo pelo blá blá blá tantas vezes dito de que o país não tem tradição nesse esporte. Acho que é questão de metodologia mesmo. No Brasil, não temos treinadores carrascos carregando chicotes. Se temos, eles se escondem do mundo exterior, tanto que é difícil imaginá-los. Por outro lado, é fácil visualizar um romeno (logo eles) gritando com meninas de cinco anos: ‘estique a perna, force a abertura, tente de novo até sair perfeito, e de novo, e de novo e de novo’.

Daiane saiu triste da competição, e isso foi o que mais me tocou. Se ela tivesse se desequilibrado e pisado na linha, mas sentasse no banco com aquele seu sorriso de 500 dentes, aí seria outra história. ‘Ok, ela não ganhou, mas se divertiu como nunca, olha lá’. Mas Daiane sentiu o peso dos milhares de corações e milhares de olhos brasileiros, sentiu os olhos da mãe, da repórter de TV (que depois perguntou se ela estava chateada por não ter conseguido medalha), da torcida, das outras ginastas, dos patrocinadores. Tantos e tantos corações e olhos esperando que ela voltasse com a medalha no peito que foi impossível saltar e voltar ao solo com os pés certos e a animação em dia.