Sobre o Cotidiano
Nos meus tempos de Puc, lá pela segunda metade dos anos 90, presenciei a criação de um dos melhores prêmios de todos os tempos: o troféu Aör. Ganhava o troféu aquele que conseguia causar constrangimento, saia justa e clima tenso com maior sucesso, porém sem a intenção de fazê-lo. Tudo começou em um amigo oculto em que Aör, a inspiração do prêmio, decidiu discursar com toda sinceridade do mundo sobre a menina que ele havia sorteado na troca de presentes. Disse algumas verdades, daquelas que ninguém nunca teve coragem de dizer (do tipo: ‘eu não conheço direito a minha amiga oculta, nós temos muito pouco em comum e provavelmente nunca seríamos amigos’), e causou frisson no evento. Cochichos. Risadas discretas. Risadas escancaradas. E o nascimento do troféu que levaria o seu nome, e que seria entregue daquele ano em diante em todos os amigo ocultos que nós participaríamos. Sem estátuas e sem papéis atestando o prêmio, o troféu Aör era uma glória concedida no boca-a-boca do dia seguinte. Não há melhor premiação que essa.
Observando os últimos acontecimentos da indústria cinematográfica brasileira, comecei a acreditar que caberia a criação de um prêmio Aör nos grandes eventos. Todos concorreriam: diretores, atores, equipe técnica e até convidados ilustres. Ganhava aquele que desse a pior declaração à imprensa, no estilo Rubens Ewald Filho pós Festival de Gramado (vide texto abaixo). Mas a minha idéia foi por água abaixo quando eu percebi que essas declarações desastradas são, muitas vezes, premeditadamente polêmicas. Ou seja: aquilo tudo é dito pra sair na capa dos jornais mesmo, fazendo com que o nome de certas figurinhas que nem costumam aparecer tanto assim seja publicado por semanas. Uma maneira maquiavélica de mostrar que está na mídia, uma coisa assim ‘falem mal mas falem de mim’.
Desse modo, o troféu Aör não teria mais lugar. Esse prêmio baseia-se na quase ingenuidade do declarante, na questão de que o cara acha que não tem nada demais ele falar o que está falando, já que todo mundo pensava o mesmo. Não, definitivamente o troféu Aör deve ficar restrito aos encontros esporádicos dos meus amigos de faculdade e ao boca-a-boca por telefone do dia seguinte.
Para aqueles que falam querendo chocar ou causar desconforto, a esses eu voto na criação do troféu Michael Moore. Dispensa explicações e lembranças. Moore conseguiu o que queria em um momento que ninguém esperava. Golpe baixo em pessoas baixas, e frases relembradas até hoje. E se fosse criado o troféu Michael Moore, não faltariam indicados. Olha, por exemplo, a briga do Cláudio Assis com o Hector Babenco. Troféu para o Assis, com toda certeza. E por unanimidade do júri.
Era a entrega do Prêmio TAM de cinema, com um monte de gente importante, e alguns arrozes de festa, como em qualquer boca livre famosa. Babenco disputava a estátua (é uma estátua?) de melhor diretor de 2003, assim como Cláudio Assis. Babenco ganhou e foi ao palco todo feliz buscar o seu souvenir, quando Assis gritou ‘imbecil’.
De repente, silêncio. Já imagino os jornalistas anotando, ligando para as redações, os fotógrafos tentando captar a cara de indignado do premiado, os convidados se ajeitando nas cadeiras. Babenco revidou: ‘por que você não vem ao palco falar isso na minha cara?’. E aí o Assis mandou um ‘vai tomar no cu’.
‘Vai tomar no cu’ com tapete vermelho e em rede nacional tem seu valor, apesar de que eu achei o filme dele, ‘Amarelo Manga’, uma droga.
Daí seguiram-se jornalistas querendo declarações do agressor e do agredido. Assis disse que era preciso admitir que o cinema nacional era dominado por Barretos, Cacá Diegues e Babenco. Babenco limitou-se a elogiar o filme de Assis e de queixar-se, com voz chorosa (licença poética da autora), de que ele não sabia que o colega agressor era uma pessoa tão baixa.
Nesse ponto, a confusão já estava formada. E, por mim, o prêmio Michael Moore já estava entregue. Tudo bem que o discurso de Assis nem se compara com o de Moore. Mas, convenhamos, o barraco foi muito bom também.