Pegando ônibus: aprenda as regras
Sobre o Tédio Cotidiano
O cara que pega ônibus deve saber de cor todas as regras de conduta necessárias para esse tipo de feito. Aliás, ele deve nascer sabendo – se não periga entrar no coletivo e ser olhado com desdém pelos outros passageiros. Os passageiros do nosso querido transporte público são sempre muito exigentes com o quesito “procedimentos”, e riem sem disfarçar quando um novato ou um mal acostumado passam na roleta. Pode reparar: se o ônibus dá uma freada brusca e alguém quase cai no chão, nego ri. Ninguém, ninguém mesmo, levanta e oferece: “Eu vi que você não costuma andar de ônibus. Bom, pode sentar aqui no meu lugar porque eu ando todo dia, já sei como me equilibrar dentro do carro. Aliás, nem precisa segurar a minha pasta”. Não, não, ninguém diz isso. Um novato no ônibus é entregue à própria sorte. A primeira viagem de ônibus é como um teste para o mundo real. Só poucos são aceitos.
Outro dia, carro na oficina, tive que voltar com esse esporte. Não sabia nem quanto estava custando a passagem porque, falando sério, depois de muitos anos a pé e no perrengue, dei adeus ao automotor compartilhado. Lembranças de ônibus lotados na hora do rush eu já tenho muitas, o suficiente para o resto da minha vida. Não preciso de mais experiência. Mas uma vez ou outra, quando o acaso exige, me entrego perfeitamente ao meu querido coletivo. Evitando, é claro, os olhares sarcásticos dos outros.
Pois bem, peguei um desses micro ônibus onde se paga a passagem para o motorista. Daí o meu primeiro erro: não separei a grana antes, e tive que dividir minhas duas mãos entre pegar o dinheiro dentro da carteira, me agarrar na barra de ferro, segurar o guarda-chuva (sempre há um guarda-chuva nessas horas) e pagar ao motorista. Depois que eu consegui tudo isso, aliviada por não ter deixado nada cair no chão, passei pela roleta.
Daí vem a segunda fase: escolher o lugar. Na primeira cadeira, um rapaz de trinta anos olhava para mim avidamente. Não, não vai ser ali. Mais à frente, uma senhora de 200 quilos ocupava dois quadradinhos do assento. É, ali também não, definitivamente. Avisto lá no fundão um banco completamente solitário e é pra lá mesmo que me dirijo. Gosto de colocar a bolsa antipaticamente ao meu lado. Sou espaçosa mesmo. Um banco vazio é sempre uma benção dos céus. E, como todo mundo sabe, não se deve dispensar uma benção assim, do nada. Sentei.
Observava atentamente o ponto onde deveria saltar. Mais à frente, mais à frente. É o próximo. Bom, o momento de puxar a cordinha é a terceira etapa desta complicada situação. Será que eu puxo agora? Deixo para puxar quando estiver mais perto? Essa dúvida me acompanha desde os tempos em que eu era usuária freqüente do coletivo. Adio uns dois segundos a decisão de tocar a campainha até que pronto, está feito. Só que o ônibus não parou.
Quarta parte: reclamar com o motorista. Ando todo o corredor do ônibus sentindo os olhares de desdém sobre mim. Chego ao condutor e obedeço às regras, falando apenas o estritamente necessário: “Eu queria saltar no ponto que passou”. Ele olha pra mim com cara de quem não está nem um pouco interessado, mas responde: “Deveria ter tocado a campainha antes”. O momento da cordinha, sempre ele. Não me dou por vencida e continuo o pseudoprotesto: “Pode parar no próximo, por favor?”
Mas o próximo está muito próximo mesmo, e o cara, para me sacanear, freia bruscamente e eu quase vôo. Percorro tooooodo o corredor novamente, dessa vez em direção à porta de saída, sentindo os olhares, tantos olhares. Um paranóico com certeza entraria em colapso numa situação dessas. A porta está lá, aberta, me esperando, e cada segundo que demoro para chegar até ela e atingir a calçada me parece perigoso. Como se eu estivesse atrasando de todo resto. Como se eu fosse uma daquelas crianças que vomitam no ônibus da excursão e atrapalham todo o passeio.
Antes de sair, ainda me pergunto: será que eu grito um ‘obrigada’ pro cara lá da frente? Desço sem agradecer nada, me sentindo a pessoa mais mal-educada e ingrata do mundo.
Andar de ônibus levanta muitas questões internas em mim. É um perigo.
2 Comments:
Sempre achei que só eu tinha questões quando andava de ônibus. Dias desses cheguei a conclusão que tenho um comportamento racional todas as vezes que preciso escolher um assento. Sempre opto pelos mesmos lugares, em seqüência de preferência.
belo texto.
(se quiser colocar outra forma de 'comentários', já que esta é restringe bastante, me fala)
26 de agosto de 2004 às 09:20
Você agora descreveu bem as mazelas de quem só pega ônibus de tempos em tempos. Eu usava ônibus pra tudo, até ter meu carro (sem dividir com minha irmã). Outro dia deixei o carro em casa e fui de ônibus para o trabalho, e passei quase que pelas mesmas coisas. O agravante, no meu caso, é que eu tenho pernas compridas e por isso a luta por assentos é ainda mais sofrida.
31 de agosto de 2004 às 08:23
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