Três tipos de texto para brincar. Três possibilidades de (des)agradar possíveis leitores. Para comentar ou para jogar na lama: brunapaixao@hotmail.com. Mas não para colocar no MSN, please

terça-feira, agosto 31, 2004

Ficção

Sobre o tédio
Entrar no túnel do tempo. Às vezes ele gostava de entrar no túnel do tempo e provar a si mesmo que era possível, ainda, ser como era há cinco, seis, sete anos, da mesma maneira que era aos vinte e poucos – afinal de contas, o que mudou, a não ser um punhado de rugas novas e um pouco menos de paciência para certas situações e menos espanto também? O que realmente mudou, fora esses pequenos detalhes, dentro daquele que já tinha ou 30 ou 40 ou 50 anos, dependendo de que calendário contar? Foi por isso que ele entrou no túnel do tempo, comprou uma anfetamina com o Doctor Drugs e caiu no que chamava de noitada clubber (mesmo sabendo que ninguém mais fala ‘clubber’).

Ei, as poltronas continuam as mesmas e a sensação também é a mesma. E todos esses rostos, alguns que eu conheço e outros que eu ainda não conheci, todos eles continuam os mesmos. Até os desconhecidos continuam os mesmos, na sua maneira calada de não tomar idéia da minha presença, ou então observar de longe o meu sorriso, ou puxar conversa ou negar simpatia. Todos os desconhecidos continuam os mesmos, e as meninas ainda usam estrelinhas perto dos olhos e glitter nas pálpebras e botas e saias curtas e cabelos muitas vezes vermelhos. Doctor Drugs me garantiu que hoje eu seria mais novo cinco, seis ou sete anos, e é verdade: estou aqui entre eles e é como se eu nunca estivesse longe, é como se eu nunca houvesse tentado outros caminhos, nadado em outras águas – porque essa aqui é a minha praia, olha como eu me sinto bem, no meio de todos eles, sentado nas poltronas e esperando o resto acontecer.

Só que o tempo foi passando meteórico, e lá pelo meio das horas eles entendeu por quê nunca mais tinha entrado no túnel do tempo, e por quê ele tinha se afastado daquele lugar pra começo de conversa. Tudo plástico demais. Tudo milimetricamente colocado no lugar errado, provocadoramente alterado do convencional, certinho demais dentro do seu desacerto. A rebeldia programada. Ai, deus, como todas aquelas pessoas lhe davam um pequeno enjôo. Uma vontade louca de ir embora. E ele, louco de anfetaminas, iria pra onde?

Pagou a conta e decidiu vagar. Por aí. Andar pelas praias, pelos calçadões, cantando uma música dentro da sua cabeça, pisando no ritmo da música. Saboreando a solidão. E ele foi, o frio e a chuva fininha incomodando um pouco, mas compondo o quadro. Ele poderia ser personagem de um filme. Ou protagonista de um romance. Ainda estava para decidir em qual dos dois se encaixaria melhor.

sexta-feira, agosto 27, 2004

A volta dos que não foram

Sobre o Cotidiano

Como todo festival de cinema que se presa, Gramado não fica restrito apenas à exibição de filmes e à mostra competitiva. Existe todo um clima rondando a premiação, um ar de Oscar dos trópicos que só quem freqüenta a festa pode levar a sério. O motivo de toda essa glamourização é provocada pelo grande número de celebridades que comparecem ao evento, é claro. Por isso, mais que marcar presença nas páginas dos cadernos culturais dos jornais, Gramado surge nos textos de fofoca. E quem nunca passou um os olhos por um texto de fofoca na vida que atire a primeira pedra.

O festival deste ano teve um toque a mais de babados. Estava indo tudo muito bem, muito certinho, dentro dos conformes, até que o presidente do júri da mostra competitiva Rubens Ewald Filho deu uma declaração infeliz ao Jornal do Brasil. E mesmo o Jornal do Brasil não sendo o que foi, como é de sabedoria popular, a declaração repercutiu por aí e acabou manchando o final do que parecia a festa perfeita.

Segundo Rubens Ewald Filho, a premiação de ‘Filhos do Vento’ foi meramente política, já que todos os atores eram negros e o Rio Grande do Sul seria um estado conhecido como racista. Não é preciso comentar o que foi dito pelo crítico de cinema, uma vez que é óbvia a infelicidade de suas palavras. O que se segue à declaração é que torna todo a seqüência de acontecimentos muito curiosa.

As palavras de Rubens Ewald foram recebidas da pior maneira possível pelo elenco do filme, que havia conquistado, ao todo, oito Kikitos. Em protesto, os atores do longa-metragem decidiram devolver seus prêmios ao júri, em uma atitude sem precedentes no Festival de Gramado.

Nesse ponto eu disse: uhu! Olha aí uma gente com atitude. Afinal de contas, devolver um Kikito, o maior prêmio do cinema brasileiro, não é para qualquer um. Mais que isso, só Woody Allen faltando ao Oscar para tocar jazz com a sua banda em Nova Iorque. Achei que, finalmente, nós poderíamos saborear um protesto legítimo, com um discurso consistente divulgado em carta aberta à imprensa, com todos os ingredientes que fariam da devolução dos troféus um ato inesquecível.

Só que logo depois eles voltaram atrás. Mantiveram a carta, mas resolveram não devolver os prêmios. Recebi a notícia da desistência do protesto com muita surpresa. Afinal de contas, melhor que ganhar um Kikito é dizer: ‘Olha, pode ficar. Assim eu não quero’.

Que falta que faz uma atitude punk, de vez em quando.

***
Depois de muito pensar sobre o tema, descobri a verdadeira razão de não participar de um reality show. Imagina ter que chamar a minha família pra torcer por mim quando eu estivesse para ser eliminada? Eles teriam que vestir aquelas camisas com escritos do tipo ‘Torcemos por você’, ou usariam perucas ruivas, ou fariam olheiras artificiais, criando algum tipo de marca registrada minha.
Não é nem comigo que eu me preocupo. É com eles. Eu nunca faria algo assim com os meus.

quarta-feira, agosto 25, 2004

Pegando ônibus: aprenda as regras

Sobre o Tédio Cotidiano
O cara que pega ônibus deve saber de cor todas as regras de conduta necessárias para esse tipo de feito. Aliás, ele deve nascer sabendo – se não periga entrar no coletivo e ser olhado com desdém pelos outros passageiros. Os passageiros do nosso querido transporte público são sempre muito exigentes com o quesito “procedimentos”, e riem sem disfarçar quando um novato ou um mal acostumado passam na roleta. Pode reparar: se o ônibus dá uma freada brusca e alguém quase cai no chão, nego ri. Ninguém, ninguém mesmo, levanta e oferece: “Eu vi que você não costuma andar de ônibus. Bom, pode sentar aqui no meu lugar porque eu ando todo dia, já sei como me equilibrar dentro do carro. Aliás, nem precisa segurar a minha pasta”. Não, não, ninguém diz isso. Um novato no ônibus é entregue à própria sorte. A primeira viagem de ônibus é como um teste para o mundo real. Só poucos são aceitos.

Outro dia, carro na oficina, tive que voltar com esse esporte. Não sabia nem quanto estava custando a passagem porque, falando sério, depois de muitos anos a pé e no perrengue, dei adeus ao automotor compartilhado. Lembranças de ônibus lotados na hora do rush eu já tenho muitas, o suficiente para o resto da minha vida. Não preciso de mais experiência. Mas uma vez ou outra, quando o acaso exige, me entrego perfeitamente ao meu querido coletivo. Evitando, é claro, os olhares sarcásticos dos outros.

Pois bem, peguei um desses micro ônibus onde se paga a passagem para o motorista. Daí o meu primeiro erro: não separei a grana antes, e tive que dividir minhas duas mãos entre pegar o dinheiro dentro da carteira, me agarrar na barra de ferro, segurar o guarda-chuva (sempre há um guarda-chuva nessas horas) e pagar ao motorista. Depois que eu consegui tudo isso, aliviada por não ter deixado nada cair no chão, passei pela roleta.

Daí vem a segunda fase: escolher o lugar. Na primeira cadeira, um rapaz de trinta anos olhava para mim avidamente. Não, não vai ser ali. Mais à frente, uma senhora de 200 quilos ocupava dois quadradinhos do assento. É, ali também não, definitivamente. Avisto lá no fundão um banco completamente solitário e é pra lá mesmo que me dirijo. Gosto de colocar a bolsa antipaticamente ao meu lado. Sou espaçosa mesmo. Um banco vazio é sempre uma benção dos céus. E, como todo mundo sabe, não se deve dispensar uma benção assim, do nada. Sentei.

Observava atentamente o ponto onde deveria saltar. Mais à frente, mais à frente. É o próximo. Bom, o momento de puxar a cordinha é a terceira etapa desta complicada situação. Será que eu puxo agora? Deixo para puxar quando estiver mais perto? Essa dúvida me acompanha desde os tempos em que eu era usuária freqüente do coletivo. Adio uns dois segundos a decisão de tocar a campainha até que pronto, está feito. Só que o ônibus não parou.

Quarta parte: reclamar com o motorista. Ando todo o corredor do ônibus sentindo os olhares de desdém sobre mim. Chego ao condutor e obedeço às regras, falando apenas o estritamente necessário: “Eu queria saltar no ponto que passou”. Ele olha pra mim com cara de quem não está nem um pouco interessado, mas responde: “Deveria ter tocado a campainha antes”. O momento da cordinha, sempre ele. Não me dou por vencida e continuo o pseudoprotesto: “Pode parar no próximo, por favor?”

Mas o próximo está muito próximo mesmo, e o cara, para me sacanear, freia bruscamente e eu quase vôo. Percorro tooooodo o corredor novamente, dessa vez em direção à porta de saída, sentindo os olhares, tantos olhares. Um paranóico com certeza entraria em colapso numa situação dessas. A porta está lá, aberta, me esperando, e cada segundo que demoro para chegar até ela e atingir a calçada me parece perigoso. Como se eu estivesse atrasando de todo resto. Como se eu fosse uma daquelas crianças que vomitam no ônibus da excursão e atrapalham todo o passeio.

Antes de sair, ainda me pergunto: será que eu grito um ‘obrigada’ pro cara lá da frente? Desço sem agradecer nada, me sentindo a pessoa mais mal-educada e ingrata do mundo.

Andar de ônibus levanta muitas questões internas em mim. É um perigo.

terça-feira, agosto 24, 2004

Medo

Sobre o tédio
Sentou ao lado dela e começou a explicação: “... é que eu já tive algumas decepções e agora não quero mais me apaixonar”. Ela tragou o cigarro, olhou para ele e sorriu:
- Quantos anos você tem mesmo?
- 23
- Então eu devo te avisar: isso é só o começo.
Os dois então se calaram. Um em frente ao outro e tantas outras distâncias, muito mais que uma cadeira mais dois palmos entre um joelho e outro, e tantas coisinhas que precisavam ser entendidas, mas que não eram ditas porque nem tudo pode e deve soar pelos ares – até que ela arriscou e mandou:
- Vou te ligar um dia desses.
Ele fez cara de quem acha que aí já é demais, que aí já é muita interferência:
- É que eu não sou um bom partido.
- Quem disse que eu acho que você é um bom partido?
Ele riu do comentário e puxou a cadeira dela pra perto. Os joelhos se tocaram, mas as outras distâncias continuavam as mesmas. Ela fez que não entendeu, fez que esqueceu do que já sabe, jogou o cabelo pra trás e riu muito mesmo.
- Você ta bêbado!
Depois ela se cansou e deu uma olhada no relógio, e já era quase tempo de virar abóbora e perder o sapatinho.
- Ei, ei, tudo bem se eu te ligar? Ou você vai ficar tenso?
- Não vou ficar tenso. Tudo bem.
Ela levantou, rodeou a cadeira, chegou por trás dele e lhe segurou a cabeça. Deu um beijo na testa e ia dizer algo, mas decidiu não dizer nada. Catou a bolsa e foi embora, deixando ele lá sentadinho, no topo de seu monte de dúvidas, de seus 23 anos, de sua incerteza e de suas infinitas e assustadoras possibilidades.

segunda-feira, agosto 23, 2004

Daiane disse ‘que merda’

Sobre o Cotidiano
Era possível sentir a tensão na sala quando anunciaram que a prova iria começar. Olhos vidrados, coração a mil. Se todos estão assim, eu pensei, imagina como deve estar a menina lá, no meio de toda a algazarra. Pois bem. No primeiro desequilíbrio, um oooooooohhhhh percorreu o ambiente: uns se sentaram, outros foram tomar um café, outros pediram aos céus: tomara que as outras também caiam. Mas depois vimos a expressão de Daiane descendo as escadinhas em direção aos braços da equipe técnica, os lábios se movimentando em um decepcionado ‘que merda’, os olhos tristes, baixos, quase com vergonha.

Senti pena. Ao meu lado gritavam que não, que pena era o caramba, que era preciso ser profissional, etc etc. Mas eu senti pena, e não a pena ruim, a que coloca o outro por baixo, mas a pena no sentido de compaixão, no sentido de partilhar com a pessoa a dor que ela estava passando, mesmo sem saber o que ela estava passando.

E então me ocorreu que o Brasil nunca terá ginastas campeãs olímpicas. Não digo pelo blá blá blá tantas vezes dito de que o país não tem tradição nesse esporte. Acho que é questão de metodologia mesmo. No Brasil, não temos treinadores carrascos carregando chicotes. Se temos, eles se escondem do mundo exterior, tanto que é difícil imaginá-los. Por outro lado, é fácil visualizar um romeno (logo eles) gritando com meninas de cinco anos: ‘estique a perna, force a abertura, tente de novo até sair perfeito, e de novo, e de novo e de novo’.

Daiane saiu triste da competição, e isso foi o que mais me tocou. Se ela tivesse se desequilibrado e pisado na linha, mas sentasse no banco com aquele seu sorriso de 500 dentes, aí seria outra história. ‘Ok, ela não ganhou, mas se divertiu como nunca, olha lá’. Mas Daiane sentiu o peso dos milhares de corações e milhares de olhos brasileiros, sentiu os olhos da mãe, da repórter de TV (que depois perguntou se ela estava chateada por não ter conseguido medalha), da torcida, das outras ginastas, dos patrocinadores. Tantos e tantos corações e olhos esperando que ela voltasse com a medalha no peito que foi impossível saltar e voltar ao solo com os pés certos e a animação em dia.